Entrevista – Homem Em Catarse

1 – Olá Afonso, aka Homem Em Catarse. Antes de mais nada, senta-te confortável no sofá e serve-te neste bar, que é inexistente, mas faz de conta que não. Conta-nos o porquê do teu nome artístico, até porque Catarse acaba por ter inúmeros significados. O significado psicanalítico remete-nos para o 25 de Abril, isto é, para a libertação de emoções/sentimentos que se encontram reprimidos. O significado filosófico, por sua vez, exposto por Aristóteles, define “Catarse” como a pureza dos espectadores. Dito isto, qual é o significado e a relação existente entre o nome do teu projeto e aquilo que pretendes transmitir para o público?


R: Agora que estou sentado no pequeno sofá, cá de casa começo por te dizer que para mim “o nome” Homem em Catarse, foi a necessidade de mostrar ao mundo coisas que tinha guardadas nas minhas gavetas íntimas. Portanto, esse “deitar para fora” liga-se muito ao significado filosófico grego e sempre tive a noção e associei a isso. A necessidade de o fazer logo à partida e depois, a liberdade de o fazer. Aí talvez esse significado psicanalítico de Abril esteja presente de uma forma subliminar. No entanto, julgo que é sobretudo uma necessidade de partilha e de purificação de quem partilha com quem absorve e assimila. E é nessa partilha que fez todo o sentido (a meu ver) este nome para um objecto artístico que necessita “deitar para fora”, partilhando isso com as pessoas.


2 – És, de forma destacada, um dos multi-instrumentistas de excelência do nosso país. Além da paixão pela música, denota-se uma outra paixão paralela a essa, a da escrita. Destas duas artes, qual foi o teu primeiro amor? E, de seguida, em que momento decidiste casar esses dois amores e, por consequência, transformar essas duas vertentes numa arte “unilateral”?


R: Eu acho que logo na pré-adolescência uni essas duas pontas de forma unilateral. Digamos que a música é a base de tudo mas uso-a vastas vezes para suporte da escrita. Penso que o disco onde mais se notou isso embora seja um disco instrumental foi… no sem palavras | cem palavras, porque o trabalho foi todo baseado e nasceu de um poema. A escrita mandou aí… apesar de inesperadamente o disco ser instrumental. Mas a capa… é/tem um poema.
Nos últimos tempos tenho escrito (letras) para outros artistas e isso também me satisfaz imenso, normalmente também participo musicalmente, mas o acto crú de escrever uma letra para outro projecto que não o teu é de uma elevada responsabilidade e desafio. No fundo pões tudo de ti naquilo, não podia ser de outra maneira, mas acima de tudo tens que perceber onde é que estar a pôr.
As duas coisas (ou esses dois amores) são de facto pilares artísticos para mim, umas vezes cruzam-se, outras fundem-se outras revezam-se e gosto que seja assim – é a liberdade criativa a exist
ir.


3 – O teu novo álbum, o “Sete Fontes”, que se centra naquilo que são os caminhos e lugares de Braga, foi criado com o apoio do gnration. Este teu mais recente trabalho, já estava planeado ou a pandemia e, o respetivo apoio do gnration, uniram-se para te formar uma onda de incentivo improvável para que o lançamento deste álbum se tornasse a realidade que hoje temos o privilégio de conhecer?


R: Foi a pandemia. E depois claro, apoio do gnration também. Mas não é um disco pandémico no seu objectivo! É um disco de refracção mas que bebe na tranquilidade num hedonismo pacífico e de completa abstracção. Tem muita contemplação e existe porque de repente vi-me forçado a não poder trabalhar (dar concertos) e o piano foi um escape e uma superação. Nunca imaginaria escrever um disco ao piano (um instrumento que absolutamente não dominava) uns meses antes. Foi um incentivo improvável, sim.


4 – Toda a gente, até há bem pouco tempo te conhecia, sobretudo, pelas tuas qualidades na e com a guitarra. No entanto, no “Sete Fontes” invertes esse paradigma. É o teu primeiro álbum feito, na totalidade, no piano. Confessaste, recentemente num concerto, que o facto de te vermos no piano foi uma consequência positiva do confinamento. Se não fosse o confinamento e a solidão que ele, no geral, nos trouxe, achas que terias pegado no teclado que tinhas por casa e aprendido de forma auto-didata o instrumento? Ou ainda estaria na dispensa à beira do estendal?


R: Não estaria na dispensa. O dispensa é pequena e o teclado grande! Mas… não existiria o Sete Fontes se não houvesse esta estranha fase de vida. Tanto a nível de tempo como a nível de inspiração. O disco bebe muito de locais próximos de onde vivo em Braga, e isso aconteceu porque tal como praticamente todas pessoas, havia a inibição de sair da zona onde se vivia. E o disco “fala” desses lugares, que mesmo ao pé de casa nós não conhecíamos. E às vezes a beleza está perto, mas normalmente nós não damos conta das coisas que estão muito perto de nós. É mais fácil ver o todo ao longe.
E depois o excesso de tempo, inverteu a correria que felizmente tinha (que era dar concertos). Num dia ia fazer um tour em Espanha e no outro nem posso sair de casa. Eu tinha de pegar em algo para afogar mágoas… foi o teclado. Abençoado teclado que me salvou.


5 – Como explicas o processo Fernando Santos, ou seja, o processo de seleção dos sete lugares que te levaram a desenvolver o “Sete Fontes”? Podes fazer de conta que és um guia turístico e promove, aqui, os sete lugares que impulsionaram este trabalho.


R: Ora bem. Espero que o município de Braga leia isto, porque de facto isto é ser embaixador turístico da cidade (no fundo é o que o Sete Fontes é.)
Então aqui vai: O primeiro tema que senti que tinha de fazer parte do plantel foi “Santa Marta das Cortiças”. Porque eu já conhecia e porque nos estranhos dias pandémicos foi um local onde ia ver ao longe a cidade e libertar a face ao vento. É um local que ganha (pelo menos até agora) por ser mais sossegado que outros locais elevados junto a Braga. E essa quietude assim como a bela zona de Santa Marta de Leão casaram com uma melodia que tinha escrito ao piano. Aquilo que eu sentia lá, sentia ao tocar essa ideia. Fui confrontando as coisas e passado algum tempo tive certeza que era o melhor “trinco” para a equipa.
Depois descemos a encosta e abraçamos o centro histórico. Ouvimos os sinos da sé (gravámo-los), e sentimos que há ali um início marcado de algo. Estava a nascer o primeiro tema do alinhamento do disco. Pelas ruas de Braga há uma estranheza silenciosa, mas as coisas belas estão lá e com necessidade que algo acontecesse imaginamos uma valsa no Museu dos Biscainhos. O silêncio permite-nos imaginar mais facilmente. Por momentos deixamo-nos levar pela beleza história do local e temos necessidade de ficarmos noutro tempo em negação à realidade.
Mas a realidade era outra e num fim de tarde sentir a Rua do Souto deserta… é testemunhar uma pandemia. Está tudo fechado. Onde foram as pessoas? Espera… ouve-se o vento. Estás tão só como a rua está deserta e tentas também imaginar a rua tal como ela sempre esteve para ti, com pessoas, dinâmica, viva… mas não dá. O silêncio mais uma vez é demasiado imponente.
Pausa para respirar…
Havia mesmo uma necessidade ir buscar outros lugares. Onde a paz fosse mais forte que os silêncios. Subi a serra dos picos (sugerido pelo amigo Ilídio Marques) e encontrei um pastor e percebi que para ele a vida continuava igual. As ovelhas e os riachos continuam livres. Tinha de testemunhar isto no disco. Isto também era a salvação. A 10 minutos de Braga estavas na montanha. E que bem que ela nos faz. Percebi que andar pelos caminhos e trilhos poderia ser um bom analgésico para a dor. Descobrem-se locais belos. Vai-se à Nascente do Este a pé. Bonito. Há locais maravilhosos ao pé de casa. Sente-se o Minho, sente-se o verde sente-se a nascente de um rio. Aqui a água é límpida, fresca e livre.
Por fim, e na falta de um avançado-centro descubro outro lugar que no acesso parece nascido de um filme do David Lynch e que depois se transforma num local natural inspirador – os Moinhos de Portuguediz. Foi o último tema a ser escrito. Acho que descobrir locais bonitos faz muito bem à mente. O facto de descobrir e sentires que tens ali um local “teu” que “nunca” estará inundado de turistas é algo mais apaziguador.
Inspirei e desci novamente à cidade para fechar o plantel e preparar-me para o dérbi: gravar um disco ao piano.


6 – Tens sentido que a receção deste teu novo álbum tem sido diferente dos anteriores, na medida em que exploras um som mais profundo e introspetivo nas teclas? Analisando as coisas noutro prisma, sentes que consegues chegar a outro público que até então te era mais difícil atingir?


R: Senti que cheguei a outros públicos. Isso senti. E sendo num instrumento “novo” para mim tenho tido até de certa forma uma reacção mais sólida do que em alguns dos trabalhos anteriores. Ou então é fruto de um trajecto… não sei. Mas um facto é que o disco quando saiu, de certa forma, teve um impacto que eu não esperava. Talvez por ser diferente… talvez porque saí da zona de conforto. Talvez porque escolhi bem o plantel…


7 – Recuando um pouco no tempo, até porque aqui usufruímos desse poder, o “Viagem Interior” foi denominado como um dos melhores álbuns da música portuguesa, em 2017. Este álbum causou um impacto ímpar, além de teres contado com a colaboração do José Luís
Peixoto e dos seus poemas. O que te motivou a seguir esta ideia de viagem, em que os títulos das músicas são os nomes de múltiplas regiões do país? A tua ideia foi a de compilar uma panóplia de quilómetros num álbum, promovendo assim, aquilo que são os encantos do nosso país?


R: A ideia do Viagem Interior começou com uma viagem a Évora. Gostei muito da cidade. Acabei por escrever um tema e foi das primeiras músicas enquanto Homem em Catarse. Posteriormente e fruto de uma ida à Covilhã o desfecho foi o mesmo. Comecei a pensar em encetar uma viagem pelo interior do país na ânsia dos lugares me provocarem reacções idênticas/novas criações. Acabou por acontecer em mais 15 locais. Fiz duas grandes viagens ao interior em modo road-trip. Uma espécie de N2, numa altura em que ainda não “se falava” muito nisso. A minha ideia era também sociológica. Lembrar o interior esquecido. Ligar a arte as nossas raízes, os nossos locais. Nunca ninguém se lembra do interior – a não ser quando há incêndios ou tragédias familiares. Temos de olhar para parte do nosso território com outro olhar. Portugal é um monte inclinado para o mar; temos de ter capacidade para perceber que lá no alto se respira melhor e há um outro lado que nos complementa. Quis passar essa mensagem. O disco acabou por ser um marco no trajecto artístico de Homem em Catarse. Depois que o disco saiu sempre senti necessidade de o levar ao vivo a esses locais. Ainda faltam alguns…


8 – Quando atuas gostas de explicar e contextualizar alguns dos teus sons. Fazes isso para dar boleia ao público para que ele, de seguida, embarque na viagem que estás prestes a tocar?


R: Sim, sobretudo nos temas do Viagem Interior e do Sete Fontes. Ambos falam de locais, embora no caso do Viagem Interior com um espectro mais abrangente. Gosto de explicar o que senti e que possivelmente me levou a escrever sobre aqueles locais. No caso do Sete Fontes gosto de contextualizar as pessoas e explicar que comecei a dedicar-me ao piano recentemente devido à pandemia e que foi um desafio enorme para mim, quase como que a dizer às pessoas que nos desafios normalmente está sempre a salvação.


9 – Continuando a navegar de marcha-atrás, antes da pandemia rebentar e nos ferir a liberdade, lançaste um disco totalmente instrumental, o “sem palavras | cem palavras”. Este disco, como é sabido, foi baseado num poema da tua autoria. Por exemplo, a “Calle Del Amor”, esteve com um pé fora do disco. Partindo deste exemplo, tens músicas que não lançaste e que guardas só para ti?


R: Tenho músicas que acabo por guardar só para mim. Mas a minha vontade inata é sempre de partilhar. É a minha missão intrínseca. Mas há muitos motivos para uma música não chegar às pessoas e ficar pendurada. Como músico há coisas que por vezes me fazem hesitar. Normalmente é emoção vs interpretação. O tema pode estar com emoção mas passou para lá dos limites técnicos… Normalmente coloco numa balança. Se o tema estiver muito muito honesto e com um feeling único isso vai pesar muito mais. Mas às vezes não chega…O tema até pode estar bem tocado mas “falta alma”, também pode ser um motivo para… encostar. Ou então porque esteticamente não está a encaixar com o disco, ou porque embirras com uma parte e as soluções que tentas dar não funcionam. Acho que às vezes é a magia do momento e brota algo que ficará para sempre. Tantas vezes trabalhas um tema durante muito tempo e ele acaba por ficar fora do disco.


10 – O que é que te fez criar algo paralelo ao projeto INDIGNU [Lat], uma vez que também eras fundador/compositor nesse projeto?


R: Em 2012, comecei a sentir que parte das coisas que compunha não encaixava com o rumo que os Indignu tomaram. Além disso senti que eram coisas demasiado pessoais para serem assumidas como partilha criativa com mais pessoas, por mais próximas que fossem de mim. Esse foi o primeiro motivo… depois as coisas aconteceram naturalmente e encontrei algo que complementava o que sentia no colectivo. E aí nasce mesmo a sério o Homem em Catarse.


11 – Esta é uma questão mais técnica. É a parte em que os teus instrumentos recebem os holofotes que tanto merecem. Ou seja, é um convite à apresentação dos instrumentos e do material mais usado por ti. Os pedais são muitos… Se não existirem segredos tão misteriosos como o da receita da poncha, sente-te à vontade para dar a conhecer o teu arsenal de instrumentos. (Podes e deves frisar marcas e modelos. Se é para catalogar é para catalogar).


R: Vamos lá fazer publicidade! Eu por norma, uso sempre a mesma guitarra para tocar ao vivo, com Homem em Catarse – É uma Fender Stratocaster. Não uso palheta em muitos dos temas. Neste momento uso dois loops. Um Akai HeadRush (do qual também uso reverb por vezes) e a Boss RC-300. Uso também uma série de pedais da Boss delay, Flanger, EHX reverb, RAT, Overdrive TubeScreamer, e um pedal feito pela MVO que uso para diferentes coisas como falsetes vocais, drone e atmosferas. Também uso para compor um Ukulele Tenor, sintetizador micro-korg e claro agora também, piano (sendo os meus preferidos o U3 e U1 da Yamaha). Neste momento tenho trabalhado num teclado – um Nord. Uso também melódica esporadicamente, como por exemplo no tema Teremos Sempre Paris.


12 – O teu som é uma tradução sensorial dos lugares que visitas. Vais manter essa identidade apenas pelo nosso país, ou pretendes expandir e construir, trabalhos futuros relacionados com viagens fora do nosso país? Vês o teu som a emigrar?


R: Eu seja onde for, abraço o que as coisas me dizem. Seja de uma forma direta ou indireta. De facto tanto no Viagem Interior como no sete fontes há nitidamente uma relação territorial com a arte. Não posso dizer que não volte a acontecer noutros contextos com outros locais… mas normalmente não volto muitas vezes aos mesmos “locais criativos”. Gosto da novidade. Gosto de encontrar novos conceitos, novos pontos de ignição. Acima de tudo e como já referi algumas vezes, a minha maior influência na escrita são as pessoas (quem faz os lugares são as pessoas).


13 – Por último, podes fazer o balanço de três coisas: um balanço retrospetivo e centrado no passado. O balanço que fazes do presente já desembrulhado, E, por fim, o que é que tens em mente para o futuro?


R: Bem, quando comecei nesta aventura… não esperava que passados uns anos isto fosse o centro da minha vida profissional. Acabou por acontecer e sendo a coisa que mais gosto de fazer na vida, diria que, e olhando para trás, o balanço é bem positivo. Tenho tido a
oportunidade de estar em estúdio, de compor para outras pessoas e sobretudo de tocar ao vivo e partilhar palco com gente que sempre admirei. Isso é gratificante e só por isso… já valia a pena. Não posso deixar de pensar e sentir-me grato para todas aquelas pessoas que têm suportado aquilo que faço e que “me seguem” e continuam a seguir. Sinto muito cumplicidade quando as pessoas chegam ao meu trabalho e ficam. Cada vez têm ficado mais pessoas e isso é reconfortante.
Neste momento, estou a apresentar dois discos ao vivo (sem palavras| cem palavras e o Sete Fontes). Um deles a pandemia retirou-me a oportunidade, o outro é o maior desafio que tenho em mãos desde o início de tudo isto. Existem alguns concertos marcados para os próximos meses e é tudo que neste momento precisamos todos – voltar aos concertos.
Bem, tenho alguns projectos em curso para além de Homem em Catarse, mas depois desta fase há algo que pretendo “pegar”, já tenho em mente faz vários anos… e que finalmente poderei começar a encetar.


14 – Esta questão não é uma questão. É um espaço em que, se quiseres, podes falar sobre algo que não me tenha ocorrido perguntar. Por isso, escreve sobre o que quiseres, como se estivesses no Grupo III, da ficha de avaliação de Português.


R: Bem, queria apelar a todas as pessoas para voltarem sem receios e com segurança, aos concertos ao vivo. Não há que temer, agora mais do que nunca… há que viver. E a nossa saúde mental pede por sair, pede por cultura pela socialização.
Neste sentido fica o convite também para os próximos concertos de Homem em Catarse em Viana do Castelo no Cave Avenida e no Cine-Teatro Garrett na Póvoa de Varzim (concerto integralmente ao piano) e com um convidado especial.

Muito obrigado, Afonso!

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